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domingo, 10 de abril de 2011

CULTURA EM PACOTES

     QUANDO o Liceu completa anos, no dia 4 de outubro, os jornais publicam artigos elogiosos ao centenário estabelecimento. E atestam que o velho colégio é padrão de glórias, mentor das antigas e novas gerações - e tanta cousa em que a gente só acredita porque lê. O govêrno, em fatiota domingueira, porque aqui o gôverno é o próprio governador - o gôverno dedica ao Liceu, no discurso de encerramento da solenidade comemorativa, palavras de fé e confiança, exaltando o trabalho ingente dos mestres na obra de educação da juventude.
ESSES MESMOS professôres que o gôverno elogia são carinhosamente tratados também no dia em que se aposentam com migalhas ou na hora extrema em que se despedem desta para melhor vida. Nessa ocasiões, os jornais enaltecem os longos anos de uma vida laboriosa e fecunda em beneficio da pátria estremecida.
PASSADO o festejo de mais um aniversário, a sorte do Colégio Estadual se reduz ao sofrimento. Antes da aposentadoria ou da morte, e até depois destas, professor vive de insolência alheia. Mal pensa as feridas de uma batalha, outras lutas o martirizam - e a debulhar contas de um rosário imenso de penitência ilustra a cátedra com a filosofia de ensinar a juventude como se paga o mal que não se fêz.
FAZ POUCOS dias, o gôverno, ajudado por conselheiros e juristas desejou negar ao professor do Liceu o pagamento do trabalho extraordinário dos exames orais e do exame de admissão. Embora cada mestre prestasse serviço de 12 ou 14 horas diárias, ainda assim se buscava, em gavetas e fora delas, lei que determinasse êsse pagamento honesto. A lei inexistente era o próprio Estatuto dos Funcionários Públicos. Foi preciso que o Sr. Tibério Nunes, num gesto que o dignifica, se recusasse a dançar com a música do "nós queremos uma valsa", e receitasse Brahms para os neurastênicos.
JÁ AGORA se pretende que o professor do Colégio Estadual não perceba, no período de férias o trabalho extraordinário do ano letivo. Em resumo o caso êste: em regime anterior, o professor era obrigado, para fazer jus aos vencimentos de uma cadeira, a lecionar 4 turmas da disciplina. As turmas excedentes de 4 eram consideradas suplementares. O diploma 531, de 26 de dezembro de 1951, determinou que essas turmas suplementares fôssem pagas nas férias. A lei nº 1470, de 3 de dezembro de 1956, estatuiu novo regime: atribuiu ao professor a ministração de 40 aulas mensais por cadeira, e considerou as aulas excedentes como suplementares, pagas à razão de Cr$ 50,00. Essa lei, que dimanou de mensagem do General Gaioso, sabiamente corrigiu tremenda injustiça. É que cada cadeira se compunha de 4 turmas: ora, varia o número de aulas das disciplinas. Português, por exemplo, reclama no mínimo 3 aulas por semana em cada turma, enquanto Canto Orfeônico é disciplina de um aula semanal apenas. Por essa forma, o lente de Português obrigava-se a 48 aulas mensais e o de Canto a 16 - e ganhavam ambos a mesma cousa.
Na qualidade de Diretor do Colégio, sugeri ao govêrno tratamento igual para todos. Daí ter a lei 1470 transformado turmas suplementares em aulas suplementares. Durante todo o govêrno de o Gaioso o professor recebeu nas férias os proventos dessas aulas suplementares. E também na administração Chagas Rodrigues, em julho de 1959, foram pagas nas férias essas aulas excedentes, embora a lei de Gaioso - lei 1470 - fôsse omissa quanto a êsse pagamento. Omissa, aliás, não, porque não se concebe que deixe de receber quem trabalha, no período de repouso, o que percebia no período de atividade. Mas em 28-9-59, sancionou o governador Chagas Rodrigues a lei 1.269, elevando de Cr$ 50, 00 para Cr$ 80,00, por aula ministrada, o pagamento dessa aula suplementar. AÍ A PORCA torceu o rabo, que ela não é bicó. Na expressão por aula ministrada enxergaram os intérpretes proibição de pagamento durante as férias. Só perceberá o professor - na aquiescência da formidável capacidade interpretativa dos juristas carnaquianos - quando ministrar a aula. Em férias, claro, aulas não pode haver. Então - e o raciocínio é perfeito porque os que raciocinam são no momento donos da lógica - então nas férias não há pagamento. Claramente, sucintamente, temos de perguntar: qual é a culpa da música num dó de peito? Sim, que culpa tem o professor nas falhas do legislador?
DEMAIS a expressão por aula ministrada não provocaria a derrogação de um direito como o de perceber em férias o vencimento da atividade normal. Aliás o Estado perderia autoridade para legislar, uma vez que a lei, que sai dos poderes públicos, obriga os colégios particulares a pagar nas férias, aula por aula, as aulas do ano letivo. Como admitir que o Estado imponha a entidades privadas normas que êle mesmo desacata?
Muito me alongaria na discussão do assunto, para o qual reclamo a atenção do atual Governador Tibério Nunes. O legislador piauiense poderia ter acrescido a lei de um ditame peremptório de pagamento dessas aulas no período de repouso do mestre. Esqueceu o aviso - justamente o aviso que levasse os intérpretes àquilo que é de sua fome: só entender a lei ao pé da letra. Nunca foi do espírito do legislador, na confecção da lei 1269, subtrair remuneração de férias. Do contrário, teria êle expressamente declarado a vontade.
CARLOS LACERDA, mordaz e profundo, advertiu os brasileiros da venda que se está fazendo de cultura em pacotes, como manteiga. E êste pedaço de chão chamado Piauí parece corresponder exageradamente à observação do notável parlamentar e jornalista: aqui a terra em que raros estudam e em que alguns assimilam, nasce jurista tôda vez que se vai parir uma interpretação. Os não pode, os não é possível, o artigo tal combinado com o parágrafo tal, e tantas e quantas asneiras, regem a vida administrativa do Estado - e quanto dali se aparteia para a lembrança de que as leis têm espírito e é necessário pesquisar para entendimento dêsse espírito, os vendedores de cultura em pacotes, gordos só de sabedoria de soletramento, lêem ajudados dessa soletração, letra por letra, o que está escrito, como se as leis fôssem feitas de ajuntamento de frases e concordâncias verbais e nominais.
AO SAIR do colégio - escreveu Montesquieu - colocaram-me nas mãos livres de Direito: procurei o seu espírito. E pensar que êsse homem gastou aritmeticamente vinte anos para a realização de uma obra demonstrativa de que existe precisamente um espírito das leis; toda lei tem sua razão, porque tôda lei é relativa a um elemento da realidade física, moral ou social; ou toda lei supõe uma relação. Um encadeamento de relações, uma organização de relações, um sistema de relações (positivas), eis o espírito das leis.
O LEGISLADOR obedece a princípios, a motivas, a diretrizes da razão - e que princípios, que motivos, que diretrizes racionais teriam levado o legislador piauiense a revogar a eficácia de uma lei retribuidora de férias? Pois a tendência, no momento, a respeito do assunto, é o contrário: férias é direito social e a sua remuneração com êle se confunde.
IMAGINEM só: o médico Tibério Nunes vai dar ou já deu mais uma lição de cultura política aos vendedores de cultura em pacotes. Mandou ou mandará pagar as férias dos mestres. Muito me admira o fato de o Sr. Milton Cardoso, com larga experiência da vida pública, estar envolvido nessas questiúnculas de aldeia - nessas coisinhas, picuinhas que só traduzam a história da cultura em pacotes. E o Sr. Milton não deve confundir-se com êsses vendedores, mas consertar-lhes a mentalidade.
FLORIANO é uma ilha. Mas o Piauí vai vivendo bem, como naquele país de Baudelaire, debaixo de Tibério: é sempre bom viver com direitos respeitados.

A. Tito Filho, 14/01/1960, Jornal O Dia

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